LIVRO : Paisagem Contorcida (algumas poesias)


Um golpe rápido,
conseguiu!
Afrouxou os dedos lentamente
para vê-la pelas gretinhas
Todo cuidado é pouco
- ela não pode escapar!

Tudo quieto demais...
Resolveu levantar um dedo
- ela estava segura (!?)
Levantou outro,
ela ainda não conseguia se mover
Levantou outro, e outro...
Abriu a mão,
(agora manchada por diversas cores)
Lá estava ela...
Suas asas em pedaços,
Já não era tão bela
como quando voava

Naquele dia Mário não almoçou nem jantou direito,
só pensava na borboleta
custou a dormir,

foi seu primeiro contato com a morte...


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Sinto correr em minhas veias minha verve voraz
tremo os dedos ranjo os dentes
as palavras se misturam no meu estômago
preciso vomitar!!!

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 PERSONAGEM ANÔNIMA


Ela dançava sobre a cidade devastada
a valsa suave, solitária...
Seu corpo coberto por farrapos
Pés descalços sobre os destroços

O vento circulava pelas torres
Entoando a canção do fim
Seu passado; uma fotografia desbotada,
no bolso junto ao peito

Ela girava harmonicamente,
Seus braços...
Asas de uma borboleta em queda

Embala-te, doce criança,
Sobre esse cemitério de sonhos

Estará acordada?
Alguém esteve acordado?
Estarei acordado...?

Só há você
Todos se foram antes que o bolo fosse cortado
Antes que soprasse as velas

Dance, dance...
Ainda posso te ver

Não se pense; isso é uma armadilha,
Sinta a melodia do esquecimento

Sinta...
...enquanto te penso,
Me esqueço...

Os meus olhos acompanham
A simetria do seu corpo
lançado ao espaço

sua dança e seu silêncio
me acalantam,

e sorrio
porque ainda existes dentro de mim
dance, doce menina,
esta última canção...


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escorrego
na superfície molhada
de sua
epiderme
caindo nas armadilhas
de seus poros
nessa carne
urgente
e me aprisiono
como que
espontaneamente
entre suas unhas
seus dentes
dentro
deste desejo
voraz


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Vestiu sua melhor roupa
Era uma tarde fria de domingo
Fez a barba
tudo soava como antes
os dias escorriam lentos
ao sabor dos ventos de outono

a cidade continua crescendo
e ele não entende porque
as pessoas caminham solitárias
cada qual sem saber pra onde

o jornal anuncia – na primeira página – os avanços da clonagem humana
enquanto morrem de fome milhares de pessoas...

(realidade esquálida)

a crueza desses dias escuros
o sol de metal brilhará amanhã
e tudo permanecerá
o mesmo

hoje a imagem que se lhe mostrava diante do espelho
não lhe causou espanto
olhou a si mesmo como se fosse outro

as revoltas juvenis
o desejo de mudar o mundo
tudo passou
como quem vira a página de uma revista em cores

não há inocentes nesse deserto fétido
bandidos e mocinhos tomam junto do mesmo copo
e nosso corpo é exposto nos varais da esquina

ingênuos ainda levantam bandeiras
o amor é uma peça empoeirada num antiquário
a verdade se torna obsoleta e vã

ele volta pra casa que já não é sua
seus pais na sala, diante da TV
compõe a paisagem que tanto lhe aterroriza
compõe a paisagem que ele não quer ver

o crepúsculo lá fora o convidava
ele estava a anoitecer
despede-se como quem vai a esquina

- mãe, até mais
- pai...
... ele tinha tanto a dizer
mas sua realidade denunciava...
(precária linguagem)

da sacada do seu prédio contemplava os últimos raios de sol
da sacada do seu prédio sua vida em retrospecto
da sacada do seu prédio ele anoitecia
da sacada do seu prédio (...)
e se foi de braços dados junto ao crepúsculo.



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Prece

essa lua...
este conhaque
minha pequena...
- me acuda São Drummond

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palavras talhadas
sentimentos tolhidos
confeccionados
pelo objeto língua
tolices confessas
íngua que se expressa
no poema
à mingua

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Eis que já nasce fardo


Parto?
Eis o fato
Pasme,
Eis que já nasce farto
Pare!
Eis o feto
Passe,
Eis que já nasce fétido


Perto?
Eis-me farpa
Pese,
Eis que já cresce o faro
Pense!
Eis-me fértil
Pene,
Eis que já cresce e fere


Fato?
Eis o pérfido
Farra,
Eis que estás no páreo
Farto!
Eis o pasto
Farpa,
Eis que estás em parte


Férreo?
Eis quem pasma
Fera,
Eis quem a morte pesa
Fétido!
Eis quem passa
Febre,
Eis quem a morte pede

2008 / 2009 - Belo Horizonte